Empreender é criar poesia - 


Em tempos em que se fala tanto em empreendedorismo, DeFato foi atrás de um dos principais especialistas no assunto em todo país: Fernando Dolabela, o homem que defende a liberdade e a inovação


  O tema empreendedorismo entrou de vez na pauta das principais discussões econômicas do país. A forma de debate, no entanto, ainda está longe da ideal. É o que opina o consultor e professor Fernando Dolabela, uma das principais referências no assunto no Brasil. Para ele, as pessoas ainda confundem empreendedorismo com abrir empresas. Mas não é nada disso. Em seu conceito, empreender é ser livre e inovador. Como um poeta.
Mestre em Administração, com graduação nessa área e em Direito, Fernando Dolabela lecionou em grandes instituições de ensino, como a Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e a Fundação Dom Cabral. E o tempo nas salas de aula o levou a uma conclusão: tem muita coisa errada. “É um entrave”, critica. Para o especialista, tanto o sistema educacional quanto o empresarial precisam de uma revolução pelo mesmo fator: limitam a emoção.
 
“Se você tira a emoção do ser humano, você o destrói, você causa uma ruptura letal”, diz, ao defender o estímulo ao empreendedorismo. Mineiro de Belo Horizonte e pai de quatro filhos, Fernando Dolabela é autor de nove livros e dois softwares, além de criador dos maiores programas de ensino do empreendedorismo do Brasil na educação básica e universitária. Foi para falar do assunto que ele esteve em São Gonçalo do Rio Abaixo em abril, onde recebeu a equipe de DeFato para a entrevista que vem a seguir.
O tema “empreendedorismo” tem sido muito mais debatido de uns tempos para cá. A que o senhor atribui essa valorização?
O empreendedorismo existe desde sempre, desde o começo da civilização. O que é empreendedorismo? É quando o ser humano inova, cria algo que possa dar um novo valor, que possa melhorar suas relações com o meio ambiente e com o outro. Qualquer coisa que você faça nesse sentido, seja poesia, seja computador, seja paz, seja liberdade, se é inovação e se melhora a vida da coletividade, é empreendedorismo. São conceitos muito específicos. Você tem coletividade que é o conceito ético de empreendedorismo; inovar, criar algo que não existia; e oferecer coisas boas. Esses conceitos são meus, eu entendo empreendedorismo assim. E o empreendedorismo não era percebido pelos economistas. Antes, era restrito a criação de empresas. Hoje o tema já transbordou para todas as áreas de atividades humanas. Então, eu considero o empreendedor um poeta, que cria algo que não existia e que provoca estesia, provoca bem-estar. Os economistas não consideravam o empreendedorismo como algo central, eles consideravam uma externalidade. O que significa isso? Significa que não é importante, não é vital e acontece aleatoriamente. O empreendedor era uma pessoa que poderia surgir ou não surgir, mas a economia não dependia dele. A partir de meados do século passado, eles começaram a perceber que o empreendedorismo era importante. E por que perceberam? Porque nos Estados Unidos, na década de 70, as pequenas empresas começaram a gerar mais empregos, com taxas positivas, enquanto as grandes tinham taxas negativas. As grandes demitiam e as pequenas geravam empregos, o que acontece até hoje. Aí os economistas ficaram perplexos e se viram diante de um fenômeno novo. O empreendedorismo foi percebido pelo Schumpeter, economista austríaco, e ele diz que a economia era organizado não pela mão invisível de Adan Smith, do equilíbrio entre oferta e procura, mas pela destruição criativa, ou seja, a inovação substituindo o que existe. Quando alguém inova, o que é velho morre. A economia se move por essa dialética: o novo que expulsa o velho. Hoje, o empreendedorismo é visto como o centro da atividade econômica. Sem empreendedor não há crescimento econômico.
 
O senhor é um crítico do sistema educacional atual, por considerar que a escola obstrui a inovação. O que precisa ser mudado?
 
Existe um conflito dentro da proposta acadêmica escolar, da pré-escola até o doutorado, que é a proposta de ensino. O que é ensino? Ensino é alguém que sabe e transfere o conhecimento para quem não sabe. É o sistema broadcasting. A escola é um sistema hierarquizado em quem se produz conhecimento e se dissemina conhecimento, mas conhecimentos consolidados. Empreendedorismo não funciona assim. É um processo de aprendizagem, não um processo de ensino. Porque o empreendedor trata do futuro e a escola trata do passado, no sentido de que só é ciência o que é comprovado. O empreendedor não trabalha neste universo. Ele utiliza ferramentas já conhecidas e dominadas, mas para criar o futuro. E ele não consegue aprender a ser empreendedor porque ele mesmo tem que desenvolver o seu potencial. Então, o processo educacional para se preparar um cientista da computação é muito diferente de um processo educacional para se preparar um empreendedor. Um é hierárquico, onde há uma meritocracia, e as instituições de ensino é que decidem o que aprender, quando aprender e como aprender; e o outro permite o erro. O empreendedorismo se aprende errando, fazendo e errando. Ele cria, faz, erra e refaz até acertar e ter um produto. Isso não é a prática acadêmica escolar. A escola é um entrave ao desenvolvimento do potencial empreendedor na medida em que busca a conformidade e não a criatividade.
 
Há outros entraves?
 
A família também é. A família também quer uma conformidade: quero que meu filho esteja entro do sistema, que ele se dê bem no sistema escolar. As coisas estão indo de tal forma, a escola está ficando tão distante da inovação, que isso está ficando nítido. E você não encontra mais muitos defensores desse tipo de educação. A educação empreendedora busca criatividade, paixão, talento e emoção. A emoção foi banida do processo educacional tradicional, não interessa. Só que nós somos seres emocionais, se você tira a emoção do ser humano, você o destrói, você causa uma ruptura letal. E as organizações de trabalho e ensino não admitem a emoção, porque é enxergada como antiprodutiva. Ainda temos a tecnocracia, fruto da Revolução Industrial, cujo astro principal é o especialista. O especialista é alguém que domina conhecimentos, mas não é exatamente aquele que cria. Quem cria geralmente está trabalhando nos espaços entre as especializações. Na área de informática, por exemplo, você vê pessoas que não entendem exatamente deinformática, mas sabem utilizar a informática. Criatividade é o cara que usa paradigmas de uma área e em outras totalmente diferentes. Isso é criação. E a criatividade não é uma grande ruptura, às vezes é um pequeno avanço, é uma reorganização de tecnologias, de elementos e fatores existentes.
 
A implantação da disciplina do empreendedorismo nas escolas, como São Gonçalo pretende fazer, é um bom caminho?
 
Eu comecei a trabalhar com o ensino universitário e hoje, cada vez mais, eu me convenço de que não é ali o ponto. As pessoas não nascem com 18 anos. Um estudante universitário já é um ancião cultural. É uma pessoa que já adquiriu os elementos e qualidades positivas e negativas da sua cultura. Então, o que ele quer ao encarar uma universidade aos 18 anos? Ele quer passar em um concurso público. Ele quer pão, sombra e água fresca, quer aposentar aos 23 anos. É isso que o país oferece: seja um funcionário público e aí você é o herói da família, da namorada, do namorado. No nosso país, nós abandonamos a cultura do empreendedorismo, da ousadia, da criatividade, da autossuficiência. Nós abrimos mão dos sonhos. Nós abandonamos tudo isso para sermos apertadores de parafusos. Essa é a metáfora. Dependendo do parafuso, ele pode ser de uma simplicidade maior, média ou alta. Aqui é um cara com curso profissionalizante, aqui é um graduado e aqui é um PhD. Quem não cria aperta parafuso. Quem não cria, opera sistemas criados pelos outros. E a gente passa uma vida assim. Depois é infeliz e não sabe por que. A maior fábrica de pessoas infelizes chama-se emprego. Esse é o motivo de se começar com crianças. Empreendedorismo é uma proposta, no nosso caso, também de mudança cultural. É preciso que essas crianças aprendam novos valores. E o valor que eu digo não é criar emprego, é ser empreendedora. Eu conclamo as crianças a desenvolverem o seu potencial empreendedor. Como aplicar isso é a decisão dela. Se ela quiser ser padre, ser jornalista, quiser ser pianista ou abrir uma empresa, ela que decida. Mas que seja alguém voltada para o novo. Que conceba o futuro e não o passado.
 
A pessoa já precisa nascer com o dom do empreendedorismo, ou é possível desenvolver essa técnica ao longo dos anos?
 
As pessoas acham que o empreendedor é alguém diferente, como um tocador de oboé, um violinista, alguém específico que tem algum talento que a gente não sabe explicar. Não é nada disso. O empreendedor é um ser humano absolutamente normal, nós todos temos esse potencial. Esse potencial só precisa ser ativado. Todo mundo pode ser empreendedor, é um potencial humano como todos os outros. Se você tem um potencial muscular X, você pode atingi-lo se fizer exercício. É a mesma coisa para escrever, a pessoa pode aprender ou não. Tudo é questão de desenvolver o potencial.

O senhor tem vasta experiência e conhece o cenário mundial do empreendedorismo. Como está posicionado o Brasil?
 
O empreendedor tem duas vertentes: o ambiente e o ser humano. Se você pegar um conceito amplo de ambiente e incluir cultura, condições econômicas e legislação, você tem um macroambiente que o empreendedor é fruto disso. O que eu quero dizer, de forma simplificada, é o seguinte: o empreendedor precisa de ambiente. As lideranças precisam construir um pacto social. Não é um problema da escola, é um problema da sociedade, do cidadão. É um problema da cidade. E as pessoas não perceberam isso ainda. Os prefeitos não sabem disso. Você pega o Vale do Silício, a Rota 128 de Boston, que são os dois maiores centros dos Estados Unidos em termos de empreendedorismo, e isso ocorre dentro de cidades. Empreendedorismo não é como física, que se faz em um laboratório. Empreendedorismo depende da cultura, da cumplicidade das forças. E depende também do ambiente, que deve cultivar a cultura do desafio, da ousadia, da rebeldia. Precisa ter a legislação específica que propicie o fomento do empreendedorismo; é preciso ter um sistema de oferta. É um processo é de médio e longo prazo.
 
A região é quase que na totalidade dependente da mineração. De que maneira o senhor acha que o empreendedorismo pode se desenvolver nesse ambiente?
 
Qualquer coisa que é mono é ruim. A sociedade precisa saber aplicar o excedente de capital na diversificação da economia. A chave não é mono. Um exemplo é o petróleo. São poucos os países produtores que conseguem aproveitar o próprio petróleo. A chave é a seguinte: vocês têm minério? Tudo bem. Hoje está tudo bem, mas tem que aproveitar o excedente e diversificar a economia. Nenhuma cidade deve se deixar vitimar pelo passado. O passado não determina o futuro. Se a cidade é dependente de uma commodity, você não é obrigado a seguir isso. Você segue a sua vocação, depende da sua concepção de futuro, da sua ousadia e da sua força. A cidade tem que se planejar. As pessoas têm que se conectar e falar: “o que vai ser da gente?”. Porque um dia o minério vai acabar e aí o que vai acontecer? Vai voltar a criar gado, depender de plantação de bananas? A saída é diversificar. Qual o futuro que a cidade quer? Austin, no Texas, era dependente de gado e petróleo e hoje é um centro de tecnologia. Poxa, vamos trazer gente para cá. A gente não comanda commodities, isso é variável, pode desabar de uma hora para outra. Por que Itabira e São Gonçalo não investem em tecnologias?
 
Alguma outra consideração?
O papel da imprensa é fundamental no sentido de levar esse tipo de conhecimento para as pessoas. Eu praticamente não vejo a classe política falar em empreendedorismo. Quando fala, é de uma forma equivocada. Está melhorando. Mas você vê o Governo Federal criar o Ministério da Micro e Pequena Empresa e colocar um cara que nem é do partido. Primeiro, não se cria ministério para micro e pequenas empresas. Isso é política, não ministério. Quando você fala em ministério, você acaba com a política. Isso tem que partir do presidente. Nos Estados Unidos isso é a fala do presidente. Parece que não há a percepção da importância do empreendedorismo. Eu queria deixar bem claro que a única forma de se fazer a transição do assistencialismo para a sustentabilidade é através do empreendedorismo. A única forma de fazer justiça social, de eliminar a miséria, é com empreendedorismo. Porque aí você estimula o potencial. E todos nós temos algo. Se houver condições para cada pessoa se sustentar, você faz uma revolução. E isso nós vamos ter que fazer, que seja agora ou daqui a 100 anos. Assistencialismo não é proposta de governo, é atendimento a calamidade. Não pode ser um programa de governo, mas está sendo e ninguém vai mexer nisso daí. Não estou querendo que acabe, porque a fome não pode esperar, mas isso não pode se perpetuar como política.

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